A Associação Brasileira de Etnomusicologia lamenta o falecimento do etnomusicólogo Bruno Nettl, professor emérito de Musicologia/Etnomusicologia da University of Illinois (Urbana-Champaign), ocorrido no dia 15 de janeiro de 2020.

Bruno Nettl teve atuação intensa e de longa duração no campo da Etnomusicologia, tornando-se referência fundamental na formação de etnomusicólogos/as também brasileiros/as, além de ter tido interlocução com a própria ABET. Certamente, seu legado permanecerá em nossas reflexões, discussões e trajetórias.

Desde o falecimento de Bruno Nettl, o portal da Society for Ethnomusicology (SEM) tem publicado textos rememorativos de sua biografia e legado acadêmico no cenário norte-americano. Acesse as notas elaboradas pelos professores Tim Cooley (clique aqui) e Philip V. Bohlman (clique aqui).

Em contexto brasileiro, o membro da ABET, professor Samuel Araújo, elaborou uma nota de falecimento:

BRUNO NETTL – NOTA DE FALECIMENTO (ABET)
15/01/2020

Prezadas e prezados colegas,

Por solicitação de nossa colega e Presidente da Associação Brasileira de Etnomusicologia, Profa. Dra. Marília Stein, registro aqui o falecimento hoje do Prof. Bruno Nettl, uma das principais referências da etnomusicologia internacional e que nos brindou com uma breve, porém, marcante participação na história da ABET, havendo proferido a conferência de abertura do primeiro Encontro Nacional (ENABET), em Recife, no ano de 2002.

Em seu memorialístico Encounters in Ethnomusicology (Encontros em Etnomusicologia), livro lançado em 2002, realiza um autoexame de sua trajetória, entrelaçada desde o berço à música e à (etno)musicologia. Bruno nasceu em Praga, capital da então Checoslováquia, em 14 de março de 1930. De família intensamente dedicada à música, seu pai, Paul Nettl, foi um eminente musicólogo checo da primeira metade do século XX, com ênfase na obra mozarteana e seu contexto social, mas abarcando temas correlatos não tão usuais na musicologia do período, como as danças populares de salão (há uma edição em espanhol na Biblioteca Alberto Nepomuceno, da UFRJ). Por sua casa em Praga, passavam diversos nomes da musicologia europeia do entreguerras, até que a Segunda Guerra Mundial leva a família, de origem judaica, a migrar para os Estados Unidos, onde seu pai assume uma cátedra na Universidade de Indiana, em Bloomington. É em Indiana que Nettl irá se formar, obtendo o título de doutorado em 1952, com tese sobre a música entre os Ampskapi Piikani (ou Blackfoot/Pé-Preto), sob a orientação de outro ilustre emigrado europeu, George Herzog, por sua vez, ex-discípulo do pesquisador alemão Erich Moritz von Hornbostel, reputado como pioneiro da musicologia comparada.

Após seu doutoramento aproveita uma passagem relativamente breve como bibliotecário da Universidade Wayne, em Detroit, Michigan, para realizar pesquisa de campo inovadora sobre temática urbana, entre migrantes europeus (Cheremis) no principal centro da indústria automobilística dos EUA. Foi, no entanto, sua posterior afiliação à Universidade de Illinois, nas cidades gêmeas de Urbana e Champaign, que lhe propiciou condições para o exercício simultâneo da cátedra e da pesquisa (músicas persa e carnática, conservatórios de música dos EUA, entre outros temas) formando sucessivas gerações de pesquisadoras e pesquisadores, quer como ministrante de memoráveis seminários ou como sensível orientador acadêmico, sempre demonstrando erudição sem o menor traço de pedantismo e extrema atenção aos interesses de seus interlocutores, quer no convívio social que tanto promovia com regularidade e capricho quanto dos quais animadamente participava. E não foram poucos os eventos sociais em Urbana-Champaign por ele promovidos em sua residência ou em espaços públicos entre o final dos anos 1980 e início dos anos 90.

Seus seminários – creio ter assistido a todos durante meus estudos de pós-graduação na Universidade de Illinois – eram uma oportunidade ímpar de vir a conhecer em profundidade o campo da etnomusicologia a partir da tradição anglo-germânica e sua relação com campos afins. Seria descabido em curta nota como esta uma apreciação de sua obra, mas destacaria tanto títulos que circulam bastante em bibliografias no Brasil e no mundo quanto outros de circulação quiçá mais restrita, porém de enorme relevância no conjunto de sua obra. No primeiro caso, com grande circulação, estão The Study of Ethnomusicology; Thirty One Issues and Concepts (O Estudo da Etnomusicologia, 31 Temas e Conceitos), ed. original de 1983 (seu “livro vermelho”, como ele gostava de brincar, aludindo ao famoso compêndio de Mao Tse Tung), várias vezes reeditado com adendos sensíveis às mudanças no campo em questão, seu seminal Theory and Method in Ethnomusicology (Teoria e Método em Etnomusicologia, 1964), ou o provocativo Heartland Excursions (Excursões Domésticas, 1995), que lança um olhar crítico sobre os valores e práticas de escolas superiores de música derivada de participação observante (ver Eunice Durham) realizada em sua própria instituição nos EUA, mas que muitos vêem como pertinente a outras plagas, inclusive abaixo do equador. Entre os títulos quiçá menos referenciados, mas a meu ver de importância semelhante ou ainda mais acentuada, ressalto Blackfoot Musical Thought (Pensamento Musical Pé-Preto, 1989), um estudo de base etnográfica dos conceitos de tal sociedade acerca do fazer musical, e as coletâneas por ele organizadas Eight Urban Musical Cultures (Oito Culturas Musicais Urbanas, 1978) e In The Course of Performance (Em Meio à Performance, 1994, co-organizada com Melinda Russel), ambas contribuições pioneiras a temáticas que modificaram sobremaneira os rumos da etnomusicologia mundo afora.

Em 2002, Bruno aceitou convite da ABET a realizar a palestra de abertura do I ENABET, em sua primeira e única viagem ao país. No Recife, além do deslumbre com a praia de Boa Viagem, mostrou-se positivamente impactado com a intensidade do encontro, solicitando eventualmente que um ou outro assistente a seu lado lhe resumisse em inglês os eixos principais. Passando antes pelo Rio de Janeiro, participou também da abertura da primeira edição da série Música em Debate, até hoje promovida pelo Laboratório de Etnomusicologia da UFRJ, em mesa compartilhada com Anthony Seeger, também sócio fundador da ABET e, mais tarde, vice-presidente da entidade na gestão presidida por Elizabeth Lucas (2009-2011). Ambas as palestras de Nettl no Brasil foram publicadas em português, respectivamente, na revista Anthropologia, edição especial de 2006, dedicada a uma seleção de trabalhos lidos no I ENABET, organizada por Carlos Sandroni, e no livro Música em Debate; Perspectivas Interdisciplinares, coletânea lançada pela Mauad Editora em 2008, sob organização de Samuel Araújo, Vincenzo Cambria e Gaspar Paz.