Carta da Editora
CARTA DAS EDITORAS
Colegas,
Esta edição de Música e Cultura foi produzida em meio à pandemia da
Covid-19, um período que foi um grande desafio para todo o mundo. Os pesquisadores não puderam ir ao campo e tiveram que buscar novas formas de trabalhar. Tornou-se também necessário criar formas virtuais de organizar eventos acadêmicos, defesas de teses e dissertações, reuniões e aulas. A situação tornou-se especialmente difícil para os músicos e demais produtores culturais de formas performativas, devido à proibição de sua realização presencial. Muitos perderam seus meios de vida e mesmo os que puderam desenvolver virtualmente seu trabalho têm sentido grande impacto no processo de adaptação. Deixamos nossos sinceros sentimentos a todos os que perderam entes queridos nestes tempos difíceis.
Embora em seu projeto original este não tenha sido configurado oficialmente como um volume temático, notamos que, ao comemorarmos e relembrarmos os 20 anos da Associação Brasileira de Etnomusicologia, vários textos submetidos abordam a memória da disciplina e resgates históricos das pesquisas em arenas musicais específicas. O texto de Bruno Nettl e a entrevista com Kilza Setti trazem as memórias pessoais destes pesquisadores sobre o desenvolvimento da Etnomusicologia norte-americana e brasileira, respectivamente. Katharina Döring e Marcos Branda Lacerda analisam as perspectivas que marcaram as investigações das músicas em seus campos de estudo. Esta edição também realça a internacionalização que a etnomusicologia brasileira vem conquistando. Ao lado da contribuição norte-americana de Nettl, recebemos trabalhos de uma colega portuguesa, Maria do Rosário Pestana, sendo que pesquisadores brasileiros têm se voltado para a pesquisa em outras partes do mundo, como Espanha, França e vários países da África. Há, ainda, contribuições que discutem esferas da música brasileira com novas perspectivas, como o choro no interior de São Paulo e o impacto da pandemia sobre agentes envolvidos na produção das culturas populares no norte do país.
A diversidade de gêneros textuais é uma característica marcante deste volume. Além de cinco artigos, trazemos uma tradução, uma resenha, uma entrevista
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e uma reflexão, texto de curta extensão, de estrutura mais livre, dedicado à discussão de algum importante tema contemporâneo.
Abrimos com “Quem espreita por sobre meus ombros?” (Who’s looking over my shoulder), tradução, por seu orientando Samuel Araújo, do quarto capítulo do livro Encounters in Ethnomusicology: a memoir (2002) de Bruno Nettl (1930- 2020). Com esta publicação, prestamos nossa homenagem à grande contribuição e dedicação à Etnomusicologia deste eminente investigador. O texto traça a trajetória do desenvolvimento da Etnomusicologia, particularmente a norte-americana, a partir da formação acadêmica de seus expoentes, mostrando como as ontologias da Música Erudita Ocidental permeiam os estudos da música de outras culturas. A narrativa expõe a sua própria longa trajetória na disciplina, iniciada nos anos de 1950 e persistindo até o fim de sua vida.
No artigo “As bandas civis em Portugal: um olhar multifocalizado sobre espaços de atravessamento ”, Maria do Rosário Pestana faz um apanhado geral das principais constatações que emergiram ao longo do projeto “A nossa música, o nosso mundo: Associações musicais, bandas filarmónicas e comunidades locais (1880- 2018)”, financiado por Fundos FEDER. Compreendendo o universo das filarmónicas como “um espaço entre-espaços”, isto é, “um espaço humano de atravessamento de e para outros espaços”, suas reflexões destacam tanto continuidades quanto divergências nas práticas das bandas portuguesas, seus papéis sociais ao longo do tempo e em diferentes localidades, as indústrias que sustentam e os universos sociais que se constituem em seu entorno.
Katharina Döring apresenta, em “Pandeireteiras e Cantadeiras da Galiza: Protagonismo feminino na música popular galega”, um resgate histórico e um panorama contemporâneo dessa rica e diversificada tradição, tão pouco conhecida no Brasil, e da pesquisa sobre ela realizada, destacando a atuação de distintas gerações de mulheres. É interessante notar a variedade linguística destacada no texto pela autora, que manteve nas citações diretas os idiomas originais: português, castelhano e galego.
Em “‘Cadê o Café?’”: novas trilhas do choro nas rodas do interior paulista”, Renan Bertho discute os intercâmbios musicais nas rodas de choro em sete cidades de uma região que, desenvolvida inicialmente sobre a economia cafeeira e associada à cultura caipira, passou por intensa urbanização, gerando uma juventude moderna,
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com gostos musicais e culturais cosmopolitas. Com a fundação do Conservatório de Tatuí, alguns jovens se tornaram aficionados pelo choro, mas, para sustentar essa prática, precisaram buscar músicos em cidades vizinhas. Assim, a partir dessa rede de intensa sociabilidade musical, estabeleceram-se “trilhas” do choro pela região.
Lúcia Campos, em “Uganda, Buganda, Baganda: O paradoxo da música clássica ugandesa”, faz uma análise da participação do Ensemble Baganda no 13° Festival de l’Imaginaire, em Paris, onde se observa uma disputa entre os conceitos de world music e músicas do mundo. Os produtores do evento partiram de uma concepção própria de “autenticidade”, que os levou a exigir alterações nas práticas do conjunto musical para que ele respondesse ao espírito do discurso que sustentavam. Vale apontar, contudo, que, embora os organizadores quisessem eliminar a dança das mulheres por considerá-la exotizada e sexualizada, na programação final elas se apresentaram no bis. A discussão proposta por Campos destacou, a partir das tensões evidenciadas, a colonialidade de relações que são estabelecidas em festivais voltados para apresentações de tradições musicais não ocidentais.
O artigo “Aspectos da construção rítmica e figural na música africana e uma introdução à sua pesquisa”, de Marcos Branda Lacerda, traz uma detalhada discussão histórica e crítica de abordagens analíticas da música instrumental africana, mostrando como muitos destes estudos buscam evidenciar uma suposta complexidade rítmica. A partir de sua própria experiência de pesquisa, discutida na segunda parte do texto, o autor expõe uma rica variedade de exemplos onde evidencia a participação do solista e sua relação com a textura, um aspecto raramente abordado pelos estudiosos desse repertório. Alerta para um certo olhar apriorístico e reducionista da tradição ocidental da análise musical, exemplificando a constatação feita por Nettl em sua contribuição nesta edição.
Em entrevista a Guilhermina Lopes, a compositora e etnomusicóloga Kilza Setti compartilha vários aspectos de sua trajetória, como sua formação (em relação com a trajetória da Etnomusicologia na academia brasileira), seu trabalho artístico e a pesquisa de música portuguesa, caiçara e indígena. Ao longo desse envolvente relato, o leitor poderá acompanhar, através das imagens, importantes momentos do desenvolvimento nacional de nossa disciplina, como o primeiro congresso da ANPPOM em 1988 e o Simpósio de Etnomusicologia da UFBA (1991)
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e encontrar personalidades que para ela muito contribuíram, como Kwabena Nketia, Manuel Veiga, Desidério Aytai, Gerhard Kubik, Elizabeth Travassos, Anne Caufriez, Fernando Lopes-Graça e Michel Giacometti.
O impacto da crise sanitária internacional que tem no Brasil um de seus piores cenários é tema da reflexão “Os primeiros a parar e os últimos a voltar: trabalhadores da cultura no Brasil em tempos de COVID-19”, de Lorena Avellar de Muniagurria. A autora destaca que, apesar de sua importância simbólica e econômica, a cultura constitui uma área profissional com altos índices de informalidade que, mesmo anteriormente à pandemia, enfrentava o aumento da precarização, além de um ambiente de crescente intolerância e censura.
Trazemos, por fim, a resenha do livro Viola de arame – práticas e contextos (2018), de Vitor Sardinha, realizada por Flávio Dantas Martins, que aborda importantes aspectos organológicos e estilísticos do instrumento na Ilha da Madeira, Portugal. Assim como o artigo de Katharina Döring, este texto nos apresenta um universo tão próximo linguisticamente e ao mesmo tempo tão desconhecido por aqui.
Notamos, por fim, que a disposição dos números da revista no site da ABET está em fase de reorganização, o que deverá torná-la mais acessível.
Gostaríamos de agradecer a todos os que colaboraram para que mais essa edição pudesse vir à luz: autores e pareceristas, demais membros da diretoria da ABET e os bolsistas FAPESP Micael Pancrácio e Vitor Robonato, por seu trabalho no design e reestruturação do site da revista. Encorajamos pesquisadores, professores e estudantes a incrementarem submissões para os próximos números, a fim de que possamos tê-la cada vez mais fortalecida, especialmente neste momento tão delicado para a pesquisa no Brasil.
Desejamos a todes uma proveitosa leitura.
As editoras,
Suzel Reily Guilhermina Lopes